Fazia frio. Aquele frio que corta a pele, que quebra os ossos, que parece não ter fim. Estava escuro. O relógio marcava doze horas ou quase isso. Entre as ruas desertas, com gente fantasma, uma moça andava de cabeça baixa. Seu cabelo era curto. Talvez curto demais para uma moça da sua idade. Tinha olhos enormes e negros que tinham o poder de arrancar verdades. Andava rápido. Pequenos passos rápidos e silenciosos. Vestia um casaco verde escuro um tanto quanto masculino que escondia o vestido preto que a deixava mais mulher. Andou até só sobrar os postes. E estes já iriam deixá-la também. Entrou em um prédio escuro, de uma rua escura. Subiu as escadas e passou pelo corredor vinho com paredes descascadas. Entrou em casa, ainda tremendo, ainda sentindo a frieza da rua. Ele estava na sala, sentado no sofá -naquele sofá onde tudo começara, onde tudo parecia menor, onde a vida era mais simples-. Ela se sentou ao lado dele, que lia um livro. Algum livro de poemas de algum poeta morto que acabava de descobrir por acidente. Ela ainda estava de casaco. Só de olhar pra ele seus olhos pareciam mais claros, menos aflitos. Suas mãos tremiam. -Nenhuma palavra foi dita.- Em um gesto quase que de clemência, tocou suas frias mãos no rosto dele. As mãos dele iam delicadamente esquentando-a aos poucos. Os movimentos tão graciosos que mal pareciam reais. Não faziam barulho porque não estavam mais lá. Os vizinhos não sabiam quando a casa estava ocupada ou não. Sempre em silêncio, trocavam declarações em olhares. Não podiam chamar de amor, pois seria como falar que algum outro ser poderia chegar a sentir aquilo. Algo que nem eles, nem Deus, nem ninguém seria capaz de sentir. Algo que ia além das palavras, gestos e aquilo que os mortais chamavam de amor.